domingo, 3 de outubro de 2010

Assunto: A FOME DE MARINA

A FOME DE MARINA

Por José Ribamar Bessa Freire*

Há pouco, Caetano Veloso descartou do seu horizonte eleitoral o
presidente Lula da Silva, justificando: "Lula é analfabeto". Por isso,
o cantor baiano aderiu à candidatura da senadora Marina da Silva, que
tem diploma universitário.

Agora, vem a roqueira Rita Lee dizendo que nem assim vota em Marina
para presidente, "porque ela tem cara de quem está com fome". Os Silva
não têm saída: se correr o Caetano pega, se ficar a Rita come. Tais
declarações são espantosas, porque foram feitas não por pistoleiros
truculentos, mas por dois artistas refinados, sensíveis e
contestadores, cujas músicas nos embalam e nos ajudam a compreender a
aventura da existência humana. Num país dominado durante cinco séculos
por bacharéis cevados, roliços e enxundiosos, eles naturalizaram o
canudo de papel e a banha como requisitos indispensáveis ao exercício
de governar, para o qual os Silva, por serem iletrados e subnutridos,
estariam despreparados. Caetano Veloso e Rita Lee foram levianos,
deselegantes e
preconceituosos. Ofenderam o povo brasileiro, que abriga, afinal, uma
multidão de silvas famélicos e desescolarizados. De um lado, reforçam
a idéia burra e cartorial de que o saber só existe se for sacramentado
pela escola e que tal saber é condição sine qua non para o exercício
do poder. De outro, pecam querendo nos fazer acreditar que quem está
com fome carece de qualidades para o exercício da representação
política. A rainha do rock, debochada, irreverente e crítica, a quem
todos admiramos, dessa vez pisou na bola. Feio. "Venenosa! Êh êh êh êh
êh!/ Erva venenosa, êh êh êh êh êh!/ É pior do que cobra cascavel/ O
seu veneno é cruel.../ Deus do céu!/ Como ela é maldosa!". Nenhum dos
dois - nem Caetano, nem Rita - têm tutano para entender esse Brasil
profundo que os silvas representam. A senadora Marina da Silva tem
mesmo cara de quem está com fome? Ou se trata de um preconceito da
roqueira, que só vê desnutrição ali onde nós vemos uma beleza frágil e
sofrida de Frida Kahlo, com seu cabelo amarrado em um coque, seus
vestidos longos e seu inevitável xale? Talvez Rita Lee tenha razão em
ver fome na cara de Marina, mas se trata de uma fome plural, cuja
geografia precisa ser delineada. Se for fome, é fome de quê?

O mapa da fome

A primeira fome de Marina é, efetivamente, fome de comida, fome que
roeu sua infância de menina seringueira, quando comeu a macaxeira que
o capiroto ralou. Traz em seu rosto as marcas da pobreza, de uma fome
crônica que nasceu com ela na colocação de Breu Velho, dentro do
Seringal Bagaço, no Acre. Órfã da mãe ainda menina, acordava de
madrugada, andava quilômetros para cortar seringa, fazia roça, remava,
carregava água, pescava e até caçava. Três de seus irmãos não
agüentaram e acabaram aumentando o alto índice de mortalidade
infantil.

Com seus 53 quilos atuais, a segunda fome de Marina é dos alimentos
que, mesmo agora, com salário de senadora, não pode usufruir: carne
vermelha, frutos do mar, lactose, condimentos e uma longa lista de uma
rigorosa dieta prescrita pelos médicos, em razão de doenças contraídas
quando cortava seringa no meio da floresta. Aos seis anos, ela teve o
sangue contaminado por mercúrio. Contraiu cinco malárias, três
hepatites e uma leishmaniose.

A fome de conhecimentos é a terceira fome de Marina. Não havia
escolas no seringal. Ela adquiriu os saberes da floresta através da
experiência e do mundo mágico da oralidade. Quando contraiu hepatite,
aos 16 anos, foi para a cidade em busca de tratamento médico e aí
mitigou o apetite por novos saberes nas aulas do Mobral e no curso de
Educação Integrada, onde aprendeu a ler e escrever. Fez os supletivos
de 1º e 2º graus e depois o vestibular para o Curso de História da
Universidade Federal do Acre, trabalhando como empregada doméstica,
lavando roupa, cozinhando, faxinando.

Fome e sede de justiça: essa é sua quarta fome. Para saciá-la,
militou nas Comunidades Eclesiais de Base, na associação de moradores
de seu bairro, no movimento estudantil e sindical. Junto com Chico
Mendes, fundou a CUT no Acre e depois ajudou a construir o PT. Exerceu
dois mandatos de vereadora em Rio Branco, quando devolveu o dinheiro
das mordomias legais, mas escandalosas, forçando os demais vereadores
a fazerem o mesmo. Elegeu-se deputada estadual e depois senadora,
também por dois mandatos, defendendo os índios, os trabalhadores
rurais e os povos da floresta. Quem viveu da floresta, não quer que a
floresta morra. A cidadania ambiental faz parte da sua quinta fome.
Ministra do Meio Ambiente, ela criou o Serviço Florestal Brasileiro e
o Fundo de Desenvolvimento para gerir as florestas e estimular o
manejo florestal. Combateu, através do Ibama, as atividades
predatórias. Reduziu, em três anos, o desmatamento da Amazônia de 57%,
com a apreensão de um milhão de metros cúbicos de madeira, prisão de
mais 700 criminosos ambientais, desmonte de mais de 1,5 mil empresas
ilegais e inibição de 37 mil propriedades de grilagem.
...
Rita Lee não se enganou: Marina tem a cara de fome do Brasil, mas
isso não é motivo para deixar de votar nela, porque essa é também a
cara da resistência, da luta da inteligência contra a brutalidade, do
milagre da sobrevivência, o que lhe dá autoridade e a credencia para o
exercício de liderança em nosso país. Marina Silva, a cara da fome?
Esse é um argumento convincente para
votar nela. Se eu tinha alguma dúvida, Rita Lee me convenceu definitivamente.

(*) Professor, coordena o Programa de
Estudos dos Povos Indígenas (UERJ)e pesquisa no Programa de
Pós-Graduação em Memória Social (UNIRIO)



Nenhum comentário:

Postar um comentário